Resenha do texto "A viola de mão em Portugal (1450 - 1789)", escrito pelo pesquisador português Manuel Morais.

Manuel Morais, pesquisador, musicólogo e tangedor de viola, é o autor do texto "A viola de mão em Portugal (1450-1789)", publicado na revista Aragoneza de Musicologia, vol.22, n.1, no ano de 2006. Para maior detalhes sobre o autor consultar o link http://www.chaia.uevora.pt/pdf/CV_ManuelMorais.pdf, que traz um currículo abreviado.



Para ler o texto completo consultar o link http://ifc.dpz.es/publicaciones/ebooks/id/2397

Resenha do texto "A viola de mão em Portugal (1450 - 1789)", escrito pelo pesquisador português Manuel Morais.
por Rodrigo Veras

Antes de começar propriamente dita a resenha do artigo, quero agradecer ao músico pesquisador, Fernando Deghi, que apresentou esse trabalho para mim durante a III Mostra de Música Leão do Norte, acontecido em Recife no ano de 2011.

Nessa resenha iremos dirigir mais a atenção para a parte do texto que trata da confecção das violas, portanto, é uma resenha dirigida, cabendo ao leitor a orientação para que leia o texto na íntegra, pois a quantidade de informações preciosas, com certeza, irá escapar dessa singela resenha.

A importância desse texto para a história da viola é algo precioso, como uma pedra de diamante. Pois nele, Manuel Morais, profundo conhecedor do instrumento (viola), compartilha suas pesquisas baseadas numa bibliografia densa, iconografia, documentos primários (ver texto na íntegra) e, (o que mais interessa para nós) traz notícias de documentos que citam aspectos da luteria da viola em Portugal durante esse período, transcrevendo partes dos documentos que revelam técnicas, ferramentas, usos de madeira, legislações que regiam esse ofício nos séculos citados.
Primeiramente, o autor vem falar da dificuldade de se trabalhar com o termo viola, pois, nos documentos pesquisados, o termo é o mesmo (ou semelhante) para distintos instrumentos musicais, tanto da família das cordas dedilhadas (Port. viola, violla ou viula, viola de mão; viola de sete cordas, viola de seis ordens, viola francesa, violão, viola acustica, guitarra; Esp. vihuela, vihuela de mano,vihuela commun, vihuela de quatro órdenes, vihuela de cinco órdenes,vihuela de siete órdenes, vigüela ou biguela, biguela hordinaria, guitarra, guitarrilla, guitarra de cinco órdenes, guitarra española; Cat. Viola de mà (?), It. (Napoles) viola, viola a mano (o vero liuto), chitarra; Fra. guiterne, guiterre, guitere, guitarre; Ingl. gittern, gitteron, guitar; Al. guitare), quanto da família das cordas friccionadas Violas d’arco (Port. viola de arco tiple, viola de arco contrabaixa, rabeca, rabecão, violino, violeta ou viola d’arco, violoncelo, contrabaixo; Esp. vihuelas de arco).
Logo depois trata das questões etimológicas do termo, escancarando, baseado em bibliografia possíveis origens para esse termo.

 “Etimologicamente o vocábulo Viola (escrito também com as grafias Violla ou Viula)
 é provavelmente de origem provençal, se bem que alguns autores
defendam a proveniência latina de fidicula s, diminutivo de fide,
ou ainda de chitara. Neste caso o termo pode ser proveniente do
grego kithara, ou do “árabe ocidental Kittarâ ou qitárâ; também pelo
vocábulo latino cithara, “[...] o proprio nome é identico, pois guitarra não é
mais do que a modificação de cithara”; “[...] cítara, especie de
alaude ou lira; [...] pelo lat. cithara, por via culta”.
Pags. 394-395

            A possível origem italiana para esse termo ter chegado a Portugal também é discutida pelo autor, ao passo que o que caracteriza esse instrumento é a caixa de ressonância em forma de oito. A fim de discutir essa questão etimológica e trazer ao leitor certa “estabilidade” de suas pesquisas, Manuel Morais descreve o que para ele, e também gabarito para isso, seria mais comum quando se pensa em viola.

No nosso País, desde o século XV até a
os inícios do XIX, o vocábulo
viola é sobretudo usado para designar
um cordofone de mão de caixa em
forma de oito, tampo harmónico
(ou “tampão de duas metades”), fundo
chato ou ligeiramente abaulado
 (feito em duas metades), ou em tiras
(“costilhas”) de meia-cana, boca
(“laço”) ornamentada com roseta rasa
(“laço de talha raso”) ou funda
(“laço de talha fundo”), braço (ou “pescoço”)
longo terminando por um
cravelhal em pá com cravelhas dorsais, ou
do tipo usado pelo alaúde ou pela
guitarra (do séc. XV, em foice) com as
cravelhas laterais, escala (“rotolo” ou “espelho”) r
asa com o tampo e dividida
cromaticamente por trastes
móveis (de tripa) ou fixos (de madeira,
marfim ou osso), cavalete fixo colado
sobre o tampo harmónico. Este ins-
trumento pode ser montado com
quatro, cinco, seis ou sete ordens de
cordas duplas (ou triplas no séc. XVIII),
de tripa de carneiro ou de metal.

Os registros mais antigos, dos documentos consultados pelo autor, que trazem informações sobre a viola datam do século XV, escrito no reinado de D.Afonso (1442) e do Bispo D. Luís Pires, na cidade de Braga em 1477, parte transcrita abaixo:

[...] mandamos e estreitamente defendemos, sub penna descuminhom
assy homens como molheres, eclesiasticos e seculares que por conprir
sua devaçon quiserem teer vigilia em alguua egreja ou moesteiro, capela
ou irmida, non seja ousado fazer nem conssentir, nem dar lugar que se
hy façam jogos, momos, cantigas nem bailhos nem se vistam os homens
em vistiduras de molheres nem molheres em vestiduras de homens, nem
tangam sinos nem canpanas nem orgoons nem alaudes, guitarras, viollas,
pandeiros nem outro nem huum estormento nem façam outras desonestinades
pellas quaaes muitas vezes provocam e fazem viir a ira de Deus
sobre sy e sobre a terra. [...]

O autor então fala de como a viola ganhou o mundo afora, pelas mãos dos portugueses que a levaram para vários lugares no caminho da “descoberta” de novos mundos, no contexto das grandes navegações do século XVI. Lugares colonizados por Portugal como o Brasil, a Pérsia, a China e o Japão (no início do século XVI).
O repertório sobrevivente (446 partituras) desses séculos (XVI, XVII) foram publicadas entre 1700-1750. Trata se das:

a) Cifras/De Viola/Por varios Autores/Recolhidas pelo L.do
Joseph Carneyro Tavares Lamacense, P-Cug, cota: M.M. 97;

b) Cifras de Viola de vários autores.
 Livro do Conde Redondo para Viola], PLn,cota: F.C.R, ms. Ne 1;

c) Cifras de Viola de vários Autores, P-Lfg, Ms. s/cota, pertença do Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian30.

Essas cifras são para violas de cinco ordens de cordas duplas, afinadas em Mi, Si, Sol, Ré, Lá, Mi. Variando os bordões, vezes cordas duplas dobradas, ou oitavadas.
A partir do Item 4 intitulado “REGIMENTO DOS VIOLEIROS PORTUGUESES (E ESPANHÓIS) DO SÉC. XVI AO XVIII”, o autor vem nos trazer informações ímpares sobre a luteria da viola em Portugal nesse período. É bom termos em mente que até hoje em Portugal o termo violeiro significa “construtor de violas”. Para quem toca o nome que se dá é Violista. Já no Brasil o termo violeiro designa quem toca o instrumento.

Os regimentos são documentos reais que, como o nome sugere, regiam os distintos ofícios praticados pela população, e que a Corte tinha indicações básicas dos deveres e direitos desses trabalhadores. O autor até faz uma analogia dos regimentos com os atuais códigos de defesa do consumidor e dos documentos que regularizam as profissões. Interessante ressaltarmos também que, atualmente, no Brasil não temos a regularização da profissão, talvez esse texto possa ser uma base para os luthiers reivindicarem seus direitos através de órgãos regularizadores dessa profissão tão nobre.

Por volta de 1551, ano do documento Regimento de Violeiros de Lisboa, essa cidade tinha registrado nesse regimento cerca de 16 violeiros (construtores de viola) para uma população aproximada de 100.000 habitantes, distribuídos em sete “tendas” (oficinas ou ateliers).
Já na Espanha os regimentos tinham por nome Ordenanzas (Sevilha, Granada, Toledo), e então o autor ressalta a importância do cruzamento dessas fontes para elaborar um panorama histórico da construção de violas nos séculos XVI e XVII na Península Ibérica. Na Espanha um dos nomes que se dá aos construtores de instrumentos musicas é Biguelero.
 O autor então transcreve os documentos praticamente na íntegra dando informações morfológicas dos instrumentos, bem como diferentes afinações e terminologias.
 Mas o documento que o autor enfatiza como essencial para entendermos como era a profissão dos construtores de instrumentos de cordas é o Regimento de Lisboa, datado de 1572. Para abrir “tenda” (oficina) era preciso fazer um rígido exame que acontecia anualmente (em janeiro). Caso os construtores não seguissem os pressupostos escritos nos regimentos estavam passíveis de severas punições, tais como: fechamento da “tenda”, pesados multas ou mesmo prisões dos responsáveis.

Assim, o exame de Violeiro, que era extremamente rigoroso, constava
da feitura, além da “viola de seis ordens” ou “de mão”, de uma “viola de
arco tipre ou contrabaxa”, de uma “arpa do tamanho que quiserem” e
também de um “taboleiro de xadrez e tavolas acostumadas”.
Pag. 408
           
O autor, então, transcreve o documento de como teriam que ser feitas as violas e os outros instrumentos para que enfim, o construtor pudesse abrir sua oficina. Vale a pena transcrevermos o documento aqui, tal como transcrito por Manuel de Morais.
4. E o offiçial do dito offiçio que tenda houver de ter faraa huma viola
de seis ordens de costilhas de pao preto ou vermelho laurada de fogo
muito bem moldada e laurada tampaõ e fundo de duas metades-ss- [isto
é] junta pelo meo muito bem feita e marchetada com hum marchete de
oito e outro de quatro muito bem feitos e pelo pescoço arriba leuaraõ
hum rotulo ou huma trena com humas encaixaduras com seus remates e
seraa grudada com grude de pexe fundo e tampaõ, e sera forrada per dentro
com forros de panno.
Item faraa hum laço de talha fundo ou raso muito bem feito.
Item regrara muito bem a dita viola e a limpara e per esta maneira seraa
acabada.
Item encordoara a dita viola muito bem segundo pertençer ao tamanho
della, e a apontara, e afinara de maneira que possaõ nella tanger.
Item faraa hum taboleiro de xadres e tauolas acostumado muito bem
desempenado que seia para passar com as casas do taboleiro muito bem
assentadas.Item faraa huma arpa do tamanho que quiserem bem laurada e bem
junta e bem grudada com grude de pexe e de boom compasso das cordas
que naõ vaõ humas mais largas que outras.
Item faraa huma viola darco tipre ou contrabaxa qual quiserem laurada
de fogo e do tampaõ cauado de muito boa grossura toda igoal e da regra
que venha conforme ao caualete que naõ seia muito alto nem muito baixo. [...]
6. Da qual examinaçaõ o offiçial que assi examinar pagaraa trezentos
reais e sendo estrangeiro seiscentos reis de que seraõ as duas partes para
as despesas do dito offiçio e a terça parte para os examinadores. [...]
12. Item mandaõ que os violeiros que tenda teuerem façaõ as violas de
seis ordens de duas costilhas. E seiaõ forradas com pioñs ou lenços. E os
laços dellas de talha seiaõ de folha. E se os quiserem fazer no tampaõ
seiaõ forradas de purgaminho. [...]

Liuro do Regimento dos officiaes mecanicos da mui excelente e semp leal Cidade de lixa
reformados per ordeñça do Illustrissimo Senado della pllo Ldo Drte nunez do liam. Ano.
MDLxxij, P-Lisboa, Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Lisboa, cod. 35, cap. XLI, ff.
157-159.

O autor tira as seguintes conclusões, do ponto de vista organológico destas fontes primárias
quinhentistas e seiscentistas:

– na península ibérica construíam-se violas de mão de vários tamanhos, aliás como fazem prova os raríssimos instrumentos que chegaram até nós, assim como os que são mencionados em inventários e tratados deste período;

– para a sua construção os violeiros empregavam madeiras finas, como o “pao preto ou vermelho” (pau-preto, pau-brasil, pau-ferro, pausanto, pau-rosa, nomes vulgares de árvores, sobretudo brasileiras, da família das ebenáceas, das bignoniáceas, faseoláceas-papilionáceas, das lauráceas, etc., bem como, para os tampos, o pinho de Flandres, Veneza ou de Amburgo, nomes genéricos para a epicea excelsa e para a epicea abies); que as bocas (“laço”, “lazo”) dos instrumentos eram abertas no tampo, talhando a madeira (laço raso) ou empregando o pergaminho (“laços de folha de purgaminho” ou outro material com as mesmas características) para elaborar rosetas fundas;
– o fundo da caixa podia ser feito de duas metades ou empregando a técnica das “costilhas”, por exemplo tiras de madeira moldadas em meiacana;
– para colar as diferentes peças fazia-se uso da “grude de pexe”;
– estes instrumentos eram muito decorados com embutidos (“marchetes de quatro e oito”; “atarcies”, “ataraceas”, etc.).

O autor cita também as inéditas instruções do tratadista português João Vaz Barradas Muito Pão e Morato (fl. 1689- 1763), reunidas com fins didácticos sobre os trabalhos de Pablo Nassare (1724) e João Vaz Barradas Muito pão e Morato (1762).
Nessas instruções podemos ver técnicas de construção, bem como quais madeiras eram utilizadas para os devidos fins. Então nessa parte do texto (412-413) são citadas madeiras como o Évano (ébano), pine avete (pinho abeto), o cedro, pau preto (possivelmente jacarandá da Bahia), madeiras essas utilizadas até hoje na confecção dos instrumentos musicais. Também citam técnicas de colagem, tipos de cola, formatos das caixas e proporções dos instrumentos musicais.
O autor também traz informações sobre os instrumentos dessa época que chegaram até nós. Ressalta a importância do único instrumento quinhentista feita por Belchior Diaz no ano de 1581. Para ver fotos de detalhes desse instrumento, consultar o link  http://www.vihuelademano.com/vgcrossroads.htm.
Outro instrumento que chegou até nós trata se do instrumento que ainda não tem autoria comprovada pelos especialistas. As duas hipóteses são que essa viola teria sido feita no Mosteiro de Guadalupe, na Extremadura. A outra hipótese veio através da descoberta do Luthier Johan de Guadalupe, que se encontrava em atividade em Toledo, na primeira metade do século XVI. (segue fotos dessa viola abaixo)

    


Logo após o autor traça informações sobre os tocadores da época e faz menção à iconografia onde aparecem os instrumentos de cordas dedilhadas denominados violas, ou com alguma alteração nos nomes já citados.


Portanto, podemos perceber vários apontamentos a partir desse artigo. A primeira é termos a clara referência que a luteria é uma arte que vem passando seus conhecimentos de pessoa para pessoa desde muito tempo. No caso da viola desde pelo menos o século XV.Fica claro também que a escolha das madeiras, técnicas, e modelos de viola estão baseadas nas experiências anteriores e sendo atualizadas, na medida que estas matérias-primas ainda estão disponíveis para o uso consciente. Agora uma questão que fica latente. E a história da Luteria no Brasil? Como escrevê-la? A partir de que bases documentais. Cabe aos pesquisadores se aliarem aos historiadores, musicólogos, organólogos. Todas essas divisões que a academia sugere na verdade tem afastado e departamentando o conhecimento humano. Como já disse em artigo publicado “Por uma memória da construção artesanal dos instrumentos de cordas dedilhadas: história de vida de Luthiers”. Esse é um caminho, pois, necessitamos de montar um acervo de informações que somem às pesquisas sobre essa história viva no Brasil.

Humildemente, mas também pretensiosamente, o blog Corpo Du Som, na figura de Rodrigo Véras oferece os serviços para montarmos panoramas da luteria no Brasil. Portanto, quem tiver material de pesquisa, recortes de jornais, documentos primários, instrumentos antigos, idéias, concepções seria interessante criarmos uma rede de comunicação para elevar a luteria no Brasil como algo extremamente rico, diverso, comunicativo e além do mais, criarmos essa história. Pois, História é Invenção. Os historiadores criam e recriam histórias a partir do presente, dos olhares atuais sobre o passado. Já que é assim porque não então inventarmos essa História?

Segue um abraço e, sobretudo, uma recomendação da leitura desse capítulo. Agradecemos ao Manuel Morais, pesquisador ávido, experiente e altamente competente.

Por Rodrigo Véras (aprendiz de luthier, violeiro,historiador) 
1 de dezembro de 2011.



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